Relendo um texto de 2010, onde desvelava o amanhecer em Ipanema, olhando para as Ilhas Cagarras, constato que firmei um pacto com a cidade de que voltaria, e constato esta insatisfação prosaica de precisar da dupla geografia, entre os ais e os ois.
O Homem carrega em si uma insatisfação prosaica, um dilema ancestral, que é o amor à terra e, simultaneamente, a vontade de se desprender dela, em busca de felicidade, de um eldorado, escapando a opressões, guerras e misérias, ou apenas para chegar ao pão para comer. Tamanha ilusão essa, de que podemos esquecer-nos da natureza de nós, só poderá ser filha de uma quimera mundana, em que os sonhos podem o infinito e o éter, o desamor e a esperança, tal como o palpitar de um coração apaixonado. Parece, desconfia-se, que, nesse logro de tentar enganar-se a si próprio, a vida sentencie ao Homem o cárcere maior, paulatino e contundente, que é a saudade. Mácula da insatisfação perpétua e condoída, um vazio interno que se vai alimentando com o tempo. É essa a condição intermitente daquele que migra, quaisquer que sejam as razões.
Cremos, porém, quase como militantes convictos, que o mundo salta e se adianta progressista, que de geração em geração tudo muda sofisticadamente, numa regra tácita de civilização maior, mais tecnológica. Síndrome crónico da nossa quimera ilusória de superioridade absoluta sobre a ancestralidade. Falácia!
Eu própria, embrenhada nesta reflexão, apercebo-me que embalo nesse limbo do descontentamento geográfico, apenas dissipado quando se cumprem as duas terras no mesmo ano: Brasil e Portugal. Encarcerada nessa condição de ter sido emigrante, de ter voltado, e de firmar esta ponte aérea que, felizmente, se tem cumprido. Eu, relendo um texto de 2010, onde desvelava o amanhecer em Ipanema, olhando para as Ilhas Cagarras, constato que firmei um pacto com a cidade de que voltaria, e constato esta insatisfação prosaica de precisar da dupla geografia, entre os ais e os ois. Apercebo-me, porém, que já não consigo olhar o Brasil como estrangeira, sendo-a, e que já não me desliza a caneta perante o deslumbramento, porque passou a ser terra que se estende a mim, intrínseca. É curioso, porém, que regresse ao Rio de Janeiro, na condição de insaciada emigrante que volta ao país emigrado, já com vontade de partir e saudade de cá estar, sentindo na pele o arrepio telúrico, com um projeto sobre … emigrantes. E estes dias, olhando as fichas consulares, os passaportes de outrora e agora, é como se revisitasse um passado-presente, a minha própria vida. É como se, através dos olhares das fotografias tipo passe – às vezes a preto e branco, outras a sépia –, de milhares de mulheres e de homens que vieram, também, à procura de um novo mundo, se configurasse uma imagem clara do futuro. Cristalina imagem que se cadencia com o latejar do peito, de quem sente a dupla terra, a insatisfação prosaica que se repete: essa eterna condição de ser vento.
Vanessa Ribeiro Rodrigues é jornalista, escritora, documentarista, viajante. Nasceu no Porto, morou no Brasil e na Jordânia. O que lhe importa é reinventar a cor da linguagem, caçar histórias. É autora do livro “O Barulho do Tempo” e tem vários contos e poemas publicados em revistas literárias.
Fonte: http://www.porto24.pt/opiniao/eterna-condicao-de-ser-vento/
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