Eram por volta das 14h30m de ontem quando 15 jovens, a maioria da periferia do Rio, se revezavam em um banco para quatro lugares no corredor externo do Centro Integrado de Atendimento à Criança e ao Adolescente (Ciaca), em Laranjeiras, após terem sido recolhidos pela Polícia Militar. O motivo? Estavam indo para as praias da Zona Sul do Rio.
— Tiraram “nós” do ônibus pra sentar no chão sujo e entrar na Kombi. Acham que “nós” é ladrão só porque “nós” é preto — disse X., de 17 anos, morador do Jacaré, na Zona Norte.
Do grupo que havia sido retirado de um ônibus que chegava a Copacabana, só um rapaz era branco. Os outros 14 tinham o mesmo perfil: negros e pobres. Todos os jovens ouvidos pelo EXTRA estavam em linhas que saem da Zona Norte em direção à orla. Nenhum deles portava drogas ou armas.
— Nós “estava” dentro do ônibus, não estava com nada. Nós “é” humilhado na favela e na “pista” — disparou Y., de 14 anos, que havia saído do Morro São João, no Engenho Novo, com quatro colegas.
Sem comer desde que haviam sido recolhidos pela PM, no fim da manhã, a todo momento os jovens pediam por comida. Os lanches só foram entregues cerca de quatro horas depois de a ida para a praia ser interrompida.
Pedindo anonimato, quatro funcionários da Secretaria municipal de Desenvolvimento Social que estavam no local disseram não concordar com o recolhimento dos menores. Uma conselheira tutelar, que também preferiu não se identificar, não conteve a revolta com a situação que, segundo ela, tornou-se corriqueira:
— No início, o critério era estar sem documento e dinheiro para a passagem. Agora, está sem critério nenhum. É pobre? Vem para cá. Só pegam quem está indo para as praias da Zona Sul. Tem menores que, mesmo com os documentos, são recolhidos. Isso é segregação. Só hoje (domingo) foram cerca de 70. Ontem (sábado), foram 90.
Defensores criticam medida
Após saber do recolhimento ocorrido ontem, a defensora pública Eufrásia Souza das Virgens, que comanda a Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cededica), esteve no Ciaca com o também defensor Rodrigo Azambuja. Hoje, eles vão reiterar um pedido feito em maio à 1ª Vara da Infância e Juventude da capital, para que a PM seja proibida de abordar menores dessa forma.
— A polícia está privando de liberdade esses adolescentes que não cometeram qualquer ato infracional. Isso é inaceitável, algo que se fazia na ditadura militar — avalia Eufrásia.
Ontem, um ônibus da PM com pelo menos 20 jovens chegou ao Ciaca por volta das 16h. Ao ver a equipe de reportagem, porém, a polícia desistiu de deixar os adolescentes e saiu do local.
Polícia alega situação de risco
Procurada, a Polícia Militar afirmou, por meio de nota, que “as ações ocorreram visando a proteger menores em situação de risco ou em flagrante de ato infracional”. O defensor público Rodrigo Azambuja, porém, contesta a versão oficial.
– A situação de risco é quando a criança está na rua ou sendo explorada. Se ela estiver nessa situação, pode haver uma abordagem, mas da equipe de assistência social, não da polícia – diz Azambuja, acrescentando: – Isso (impedir que os adolescentes cheguem às praias da Zona Sul) é crime, está previsto no artigo 230 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que proíbe “privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente”.
Ao comentar a prática, o frei David Santos, coordenador da ONG Educafro, que trabalha pela inclusão social de negros e pobres, também foi taxativo:
– A comunidade negra vive um momento de muitas preocupações frente à postura arbitrária da polícia. O racismo institucional está cada vez mais nítido.
O que faz a secretaria
Ao chegarem ao Ciaca nos micro-ônibus da PM, os jovens preenchem uma ficha com dados pessoais e respondem a perguntas como se são usuários de drogas e para onde estavam indo. A Secretaria de Desenvolvimento Social informou que “quem define os critérios ou quem será levado é a PM”.
Ainda de acordo com a pasta, ao chegarem ao Centro Integrado, os adolescentes fornecem os contatos de seus responsáveis e os aguardam até que eles cheguem ao local.
Quando o contato com um responsável não é imediato, o adolescente é encaminhado à Central de Recepção Carioca, onde pode pernoitar. Nesses casos, o Conselho Tutelar da área de moradia do jovem também é acionado.
‘Não se pode retirá-los das ruas dessa forma. É totalmente ilegal’
Entrevista com a defensora pública Eufrásia Souza das Virgens, coordenadora da Cededica
Que outras providências a Defensoria vai tomar por causa desse recolhimento?
Amanhã (hoje), vamos protocolar um ofício pedindo as informações dos adolescentes e a identificação dos PMs que os recolheram, e vamos pedir a abertura de um inquérito na Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV) para a apuração do crime.
Como a senhora avalia esse modo de agir da PM?
É inaceitável. Impediram que esses jovens tenham acesso a uma área de lazer da cidade, o que é muito grave. Só queremos que a polícia cumpra aquilo que está na lei. Se as crianças e adolescentes estão circulando normalmente pela cidade, não se pode retirá-los das ruas dessa forma. É totalmente ilegal.
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