POR MAURÍCIO MEIRELES
Dentro de cada drag queen tem uma diva. E, nos últimos dois anos, elas começaram a se multiplicar pela cidade — uma nova geração, que aprendeu a arte de se montar não com drags famosas dos anos 1970 e 1980, mas pela internet. É um fenômeno que começou há dois anos, com a popularização no país do reality show “RuPaul drag’s race’’, disponível no Netflix. RuPaul, lendária drag americana, é a abelha rainha — e as cariocas a seguem.
Hoje, elas não estão somente dublando suas ídolas do pop (Beyoncé, Britney…) em festas como “V de viadão”, “Bootie”, “Velcro” ou “Eleganza extravaganza”. As rainhas aparecem em desfiles de moda, aniversários, festas de casamento (gays e héteros) e chás de lingerie, entre outras. E dividem-se em tribos, nas quais até as mulheres e os barbudos têm vez.
Ursula Mon-Amourr, por exemplo, representa a tribo das drags barbadas e peludas. Ela é a personagem de João Marinho, um estudante de 21 anos do Leblon que faz sucesso na noite do Rio.
— Gosto dessa estética circense, burlesca. Já fiz tecido e agora quero aprender a cuspir fogo — diz João. — A Ursula é a mulher barbada de um circo francês, trabalhou no Moulin Rouge.
As drags barbadas são muitas — e a graça, dizem, é justamente borrar a fronteira entre homem e mulher. E, assim, pregar a liberdade. Mas drag não precisa ser feminina? Não necessariamente. Drag pode ser o que quiser, até bicho, planta, objeto, criatura alienígena.
Basta ver a história de João Tapioca. Economista, 27 anos, durante o dia trabalha no gabinete de um vereador e, durante a noite, vira o diabo. Literalmente. Sua drag se chama Azazel e é um anjo caído de 10 mil anos que está de visita neste planeta. João costuma transitar entre duas estéticas: a club kid, com visuais surrealistas, cartunescos, punk; e a tranimal, com referências de outras espécies. Mas sempre com um ar meio diabólico.
— As pessoas têm uma adoração pela imagem do chifrudo, é muito engraçado! — afirma o economista. — A bandeira da Azazel é contra o conservadorismo religioso.
As novas drags cariocas dão voz a um forte discurso político contra a homofobia. Quem se empenha em mostrar toda a diversidade dessa cena é a cineasta e cientista social Bia Medeiros, diretora do canal “Drag-se”, desde junho no ar no YouTube, com apoio da RioFilme. A programação inclui dois episódios semanais, com performances, tutoriais de maquiagem e entrevistas.
— Sempre fui aficionada por drags. Enquanto um ator faz vários personagens durante a vida, a drag é um artista que se dedica a um só — ressalta a diretora do webdocumentário. — Acho que há nelas um desejo de subversão. A lição delas é perguntar “Por que eu não posso?” em qualquer coisa da vida. É o seu corpo, a roupa que você usa, afinal. Por que não pode?
Diante de tanta variedade, há drags com família. O maquiador baiano Robson Dinair, por exemplo, encarna Ravena Creole, rainha que calça 43 sem sair do salto e já fez papel de mother drag (drag mãe) — que inicia outros rapazes na arte da montação. Ela é a criadora de Nataliya Goncharova, uma “funkeira russa” vivida por Luan Amorim.
— Agora ela já se maquia sozinha, não precisa mais de mim. Filho a gente cria para o mundo! — brinca Robson.
Ravena Creole é a drag do povo. Enquanto algumas tentam manter a compostura, com medo de borrar a maquiagem ou deixar a peruca cair, ela se joga nos braços da multidão. Seu título também foi conquistado por ser uma personagem popular, com a cara do Brasil, que gosta de usar músicas como “A carne”, de Elza Soares, ou “A roda”, de Sarajane.
— Primeiro, eu me montava por diversão. Depois, profissionalmente. Hoje, me monto pela representatividade. Depois de receber mensagens de gente que gosta de ver uma drag negra, eu vi esse lado político da montação — diz Robson. — Me sinto forte. Andando de menino, eu não ia ter esse sentimento. Drag é o ápice do gay, já passa do afeminado.
Que fique claro para quem ainda não sabe: drag queen não é sinônimo de transexual. Drag é uma forma de arte, enquanto a transexualidade é uma condição. A drag, assim, é um personagem. E qualquer um pode sê-lo. Não é nem uma arte só permitida para homens.
Outra categoria, por exemplo, são as real queens — mulheres que se montam. É o caso de Marcela Campos, a Sirena Signus. A estilista é uma das pioneiras do movimento no Rio. Estudiosa da astrologia, ela vê em seu mapa astral — que aponta uma tendência para artes coletivas, em vez de individualistas — a explicação para sua personagem.
— Me sinto mais à vontade quando me monto para um evento sobre os direitos da mulher, por exemplo — afirma Marcela, que costuma ouvir críticos dizerem que mulher não pode ser drag. — A Sirena é só uma parte exagerada de mim. Ela briga pelo que quer até o fim. Eu posso ser o que quiser!
Vinicius Rosalvos, mais conhecido como Natasha Fierce: “Um dia vamos ser a mesma pessoa” – Fabio Seixo / Agência O Globo
Ao viver um personagem, muitas das drags entrevistadas para esta reportagem disseram poder experimentar a vida de um jeito que não fariam tão fácil de cara limpa. Há quem sinta que a criatura “é mais livre” do que seu criador. O pesquisador da Escola de Comunicação da UFRJ Denilson Lopes, especializado em estudos de gênero, reflete sobre o papel da fantasia:
— Aquilo que é visto como fantasia pode ser visto como um mundo possível, formas de viver que a pessoa talvez não imaginasse — diz o pesquisador. — A noite é o espaço em que se pode ser outro. A noite não é só escapismo, mas uma expressão do desejo de se reinventar.
Testemunha disso é o estudante de Engenharia de Telecomunicações, Vinicius Rosalvos, mais conhecido hoje como Natasha Fierce. Inspirado em Beyoncé — que vence a sua declarada timidez no palco ao incorporar a “drag” Sasha Fierce —, Vinicius saiu do armário há menos de um ano. Pouco tempo depois, já estava se montando. E sua drag foi de grande ajuda na hora de se aceitar:
— A Natasha é mais livre do que eu. E eu vou ficando mais livre graças a ela. Já somos parecidas, mas um dia vamos ser a mesma pessoa.
Betina Polaroid, a drag fotógrafa
A primeira drag que fez o coração do fotógrafo Beto Pêgo bater mais forte foi Carol Di Primo, lá nos idos do ano 2000. Ele estava fotografando o documentário “Julliu’s Bar”, de Consuelo Lins, que acompanhou a rotina do bar homônimo, em Nova Iguaçu, quando se deparou com aqueles cachos louros.
Mas ele só pensou em se montar a valer ano passado, depois de assistir à primeira temporada de “RuPaul’s drag race”.
A persona criada por Beto Pêgo e sua câmera da Barbie – Fabio Seixo / Agência O Globo
— Achava que nunca teria coragem — conta. — Até que drags do programa começaram a vir se apresentar no Brasil, e eu comecei a fotografar a cena, que estava crescendo no Rio. A primeira vez que vi a Ravena eu fiquei apaixonado. Virei fã de várias drags cariocas.
Quando se jogou na noite e começou a fotografar drags e mais drags, sentiu certo incômodo:
— Como Beto, eu fotografava com olhar estrangeiro, parecia que estava escondido atrás da câmera. Situação que me remeteu à infância, quando eu não podia comprar Barbie e tinha que me contentar com o pônei azul.
Aos 39 anos, enfim, Beto “pariu” Betina. O primeiro nome que veio à cabeça foi Betina Photoshop, bem apropriado para batizar uma drag fotógrafa:
— Mas quando ganhei minha maravilhosa Polaroid da Barbie, rosa, total anos 1980, total eu aos 5 anos, tudo fez sentido.
Assim nasceu, há sete meses, a drag fotógrafa que anda causando na noite carioca. A superprodução inclui cachos de rolos de filme, colar de filtro de lente e brincos de slide.
— Ficou ótimo! — interrompe o papo, ao se olhar no espelho do apartamento onde mora, na Lagoa. — Colar os cílios é o momento mágico da montação.
Betina não fica pronta em menos de três horas. Caracterizada, foca em dois projetos. O primeiro é o Drag Polaroids, cujas fotos são feitas com a câmera da Barbie ou com equipamento mais moderno — no segundo caso, as imagens são manipuladas e só depois transformadas em polaroides.
— O que mais gosto de fotografar são as performances das drags, no palco.
O outro é o Fotomontações: através de colagens ou de sobreposição de imagens, leva para a fotografia elementos do visual. Os trabalhos são publicados no Facebook da Betina, criado há dois meses. Em breve, vão virar exposição:
— Como Betina, comecei a usar a câmera como performance. Mudou também a forma de olhar para as fotos. Sabendo agora como é o processo da montação e todo o esforço da drag, busco fotos que valorizem esse trabalho. Evito fotos que revelam os truques, por exemplo. Prefiro imagens que reforçam a ilusão.
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