Quatro faces do estado de calamidade pública no Rio
Em meio à crise financeira que levou o Estado do Rio de Janeiro a decretar estado de calamidade pública na reta final para a Olimpíada, a “BBC Brasil” ouviu histórias de quatro pessoas diretamente afetadas pela penúria fluminense em diferentes áreas.
São retratos dos impactos da falência estadual no orçamento e na vida pessoal de quatro trabalhadores, e os reflexos em serviços essenciais para a população, como saúde, segurança e educação.
Após reunião com governadores de todos os Estados, o Governo Federal formalizou um pacote de ajuda ao RJ com uma doação no valor de R$ 2,9 bilhões, mas somente destinada para garantir a segurança dos Jogos. O financiamento do término da expansão do metrô ainda está pendente, assim como os salários atrasados dos servidores e repasses para manter os serviços públicos essenciais.
Três dos quatro entrevistados são servidores estaduais e, desde o final do ano passado, amargam problemas. Tiveram o 13º salário dividido em cinco parcelas, já pagas, e os salários tiveram data de pagamento atrasada do 2º para o 10º dia útil, mas apesar do atraso vinham sendo pagos. Neste mês, os salários foram divididos em duas parcelas mas até agora somente a primeira foi paga.
Veja os principais trechos dos depoimentos:
Carla Avesani diz não ter verbas suficientes para gastos mensais do Instituto de Nutrição da UERJ, do qual é vice-diretora
Fazemos vaquinha para pagar limpeza das salas e banheiros, e já houve até mutirão. Papel higiênico e café pagamos com o que sobrou da verba de 2015.
Carla Avesani, 43, professora e vice-diretora do Instituto de Nutrição da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
“Fui afetada porque meu trabalho como professora foi completamente impactado pela crise do Estado e não consigo exercer meu papel de ensinar. Também sofri reflexos como pesquisadora e como gestora, porque no papel de vice-diretora do Instituto de Nutrição da UERJ não tenho verbas suficientes para os gastos mensais.
Na área da limpeza, o Estado rompeu o contrato com a empresa terceirizada que prestava o serviço, então fazemos vaquinha entre os professores para manter salas de aula, laboratórios e banheiros limpos. Já houve até mutirão em que nós professores e diretores limpamos, para chamar a atenção para a situação. É um desrespeito à população do Rio de Janeiro.
A greve de professores, técnicos e alunos da UERJ começou no início de março e desde então mantivemos somente os estágios dos últimos semestres, para não impedir a formatura dos alunos, e os programas de pós-graduação, que operam com bolsas externas. Por isso ainda temos papéis, materiais, papel higiênico e café, com o que sobrou da verba de 2015, mas falta insumo de laboratório. Se eu tivesse todos os alunos frequentando as aulas, tudo isso já teria acabado há muito tempo.
Eu tenho muito orgulho da UERJ e dos profissionais que atuam na universidade. Há muita gente boa e bem intencionada, e é um descaso deixar um local que gera conhecimento nesta precariedade. É um prejuízo para o Estado e para o país.
Pessoalmente ainda não contraí dívidas porque estou usando reservas, mas não sei quando vou receber a segunda metade do salário de junho. Sou casada e tenho dois filhos, e este é meu rendimento, meu direito como trabalhadora, que uso para as despesas básicas e para pagar a escola deles. Para os alunos, já vejo impactos com a possibilidade de evasão caso esta situação se arraste. Já estamos recebendo pedidos de transferência para outras universidades, e temo que docentes também saiam.
Ao invés de priorizar ensino e saúde, que são deveres do Estado e direitos do cidadão, o governo estadual está priorizando atender a uma Olimpíada, que eu nem sei como vai ocorrer diante de um Estado falido”.
Policial civil, Fábio Neira diz que deixou de imprimir registros de ocorrência por falta de papel e tinta para impressora
Há policiais fazendo vaquinha para comprar comida para os presos ou então procurando os familiares dos detentos para trazerem refeições. Não se pode deixar o preso morrer de fome.
Fábio Neira, policial civil há mais de 30 anos, comissário de polícia e presidente da Coligação dos Policiais Civis do Estado do RJ
“Meses atrás começamos a não imprimir mais os Boletins de Ocorrência por falta de papel e de tinta para a impressora. Hoje as viaturas estão sem manutenção, as armas dos policiais têm defeitos comprovados em laudo próprio e há unidades do IML (Instituto Médico Legal) que não estão podendo fazer necrópsias, sendo um dos motivos a falta do pessoal de limpeza, terceirizado. A central de informática que unifica as informações da polícia civil no Estado está parando de funcionar. São coisas que afetam diretamente o trabalho da polícia e a vida do cidadão.
Nas delegacias já estamos sem o pessoal que faz o primeiro atendimento, no balcão, e sem psicólogos. Estamos sem verba para pagar pela alimentação dos presos temporários nas cadeias dentro das delegacias, e há policiais fazendo vaquinha para comprar comida para os presos, fazendo fiado em estabelecimentos conhecidos ou então procurando os familiares dos detentos para trazerem refeições. Não se pode deixar o preso morrer de fome. Chegamos a este ponto.
Assim como todos os outros servidores do Estado estamos com metade do salário de junho atrasada, mas no nosso caso há também as horas extras. É um sistema para compensar o deficit de policiais. Por lei, o Estado precisaria ter 23 mil policiais e tem somente 10.500. Um policial geralmente trabalha 24h e folga três dias. E com o regime de horas extras, conhecido como RAS, o Estado compra as folgas e o agente trabalha nestes dias também. Estamos sem receber estas horas desde janeiro.
Uma das finalidades da verba obtida com o Governo Federal seria regularizar as horas extras para suprir o deficit, mas ainda não recebemos nada. Não tem como fazer milagre da multiplicação, não há policiais suficientes.
Sou casado e tenho duas filhas, e o que aconteceu de impacto pessoal é que você fica desorganizado, desnorteado. Tive que fazer uso de reservas, mas há policiais mais jovens passando dificuldades mesmo, sem dinheiro para condução, sem gasolina para ir trabalhar e sem verba para se alimentar. Estamos propondo que eles se apresentem para trabalhar nas delegacias mais próximas de suas casas.
Na Olimpíada eles vão encher isso aqui de militares. Mas e se prenderem alguém e nós estivermos nessa situação, com as delegacias a ponto de fechar? E depois da Olimpíada? O Estado mostra seu lado mais perverso em tempos de crise. Você não vê tentativas de reverter as isenções fiscais, de cortar cargos comissionados, vender patrimônio. Quem está pagando a conta é o servidor e a população.”
O médico André Fernandes diz que em 22 anos trabalhando na área “nunca” viu situação “tão grave”
Só recebi metade do salário, e em 22 anos neste hospital nunca vi situação tão grave
André Fernandes, 47, médico anestesista do HUPE (Hospital Universitário Pedro Ernesto)
“Estou no HUPE há 22 anos, e trabalho como anestesista no centro cirúrgico, que neste momento passa por paralisação parcial. De oito salas, somente cinco estão funcionando, e nesta semana houve um dia de paralisação de alerta, em que nenhuma cirurgia foi feita. Há redução dos funcionários da limpeza, terceirizados, e só dão conta de manter cinco salas limpas. Houve uma época em que eles comiam comida do hospital e não tinham dinheiro para o ônibus, porque estavam sem receber.
Mesmo após uma liminar da Justiça dizendo que os primeiros R$ 7,5 milhões que entrassem na conta do Governo do Estado em arrecadação teriam que ser obrigatoriamente repassados ao HUPE, só recebemos metade dessa que é a verba mínima para o funcionamento mensal do hospital.
Estamos abertos, mas com internações e procedimentos limitados. Há um impacto gravíssimo para a população. Não se trata de um hospital qualquer. Somos uma unidade de altíssima complexidade. Fazemos cirurgias de câncer, transplantes, atendemos pacientes com doenças raras, e ainda maternidade de alto risco.
Se passar da época da cirurgia, um paciente com câncer operável pode estar morto. Mesma coisa com casos de cirurgias cardíacas. São coisas graves, as pessoas estão correndo contra o relógio.
Pessoalmente, sou casado e tenho dois filhos. Tem impacto no orçamento a mudança de data do recebimento do salário e o de junho recebemos só a metade. Meus filhos, de 13 e 17 anos, foram assaltados perto do Palácio Guanabara (sede do Governo do Estado), local que a gente imagina que seria o mais policiado do Rio, mas não se vê mais polícia por aqui.
Sou afetado pela crise de todas essas maneiras. A gente fica completamente desnorteado e desmotivado. O estado de calamidade pública é só o prenúncio de algo muito maior que está por vir. Já lutamos por equipamentos, materiais, melhorias salariais, já nos acostumamos a usar quatro seringas de 5 ml por não termos a de 20 ml. Mas em 22 anos nunca tinha visto nada desse tipo.”
Edson Diniz fala sobre descumprimento de promessa de UPP na favela da Maré
As pessoas ficam cansadas de promessas que não se cumprem. Não houve explicação oficial. O que acontece agora? Qual é o plano?
Edson Diniz, 45, morou 40 anos na Maré, é diretor da ONG Redes da Maré e professor de História e doutorando em Educação na PUC-Rio
“Anos atrás quando começou-se a divulgar que a Maré teria quatro UPPs criou-se uma expectativa de como seria a relação com a polícia. Se continuaria sendo conflituosa ou se teria avanços. A expectativa dos moradores, no entanto, era de que a vida melhoraria. Depois dessa fase tivemos a fase da ocupação do Exército, que promoveu um certo abafamento da violência, e no início do processo os moradores se sentiram um pouco mais seguros. Depois houve confronto dos militares com a população, e foi desgastante para os dois lados.
A promessa era de que ao término da ocupação viria a UPP, mas os militares saíram e a promessa foi quebrada por conta da crise, sem apresentação de um plano ou alternativa. Houve um retrocesso, e voltamos à situação anterior. A polícia voltou a fazer incursões, há sempre perigo de tiroteio. Não temos UPP e não temos alternativa.
Agora com a Olimpíada há chance de haver um cerco dos militares, um cinturão em torno da comunidade, algo que já ocorreu nos Jogos Panamericanos e na Rio+20. Os moradores se sentem intimidados e usados nesses momentos, com tanques de guerra nos principais pontos de entrada e saída apontando para dentro da favela, caminhões com soldados.
A população vai ficando descrente do poder público com as promessas não cumpridas. Houve a construção de uma escola técnica aqui, uma Faetec. A escola está pronta, mas com a crise não há professores, não foi inaugurada. E o morador nem ficou sabendo por que não está funcionando.
Houve a construção das Escolas do Amanhã, mas com a violência muitos professores não querem vir trabalhar na Maré. Na minha opinião a proximidade com o aeroporto internacional bota a Maré no mapa quando há os grandes eventos, é uma comunidade muito politizada, que é muito visível. Mas por outro lado há repressão o tempo todo.
É claro que é importante você ter maior locomoção na cidade, o Museu do Amanhã, o metrô. Mas eu me pergunto o que essas melhorias oferecem para quem mais precisa? Se tudo isso for ajudar somente a atrair mais investimento para as áreas com maior especulação imobiliária, não serve para os que mais precisam.”
Fonte: http://ow.ly/U80q301A9ge