Glória recebe novos moradores e empreendimentos culturais

Há 12 anos, quando Deborah Colker começou as obras do seu centro de dança no número 30 da Rua Benjamin Constant, na Glória, os amigos fizeram uma espécie de bullying. Da grande torcida “do contra” que se formava surgiram frases como “Você está louca”, “Que absurdo”, ou ainda a dolorosa “Ninguém vai até a Glória”.

foto0— Ouvi muito também: “Você deveria escolher um lugar na Zona Sul”. E aí eu rebatia: “Gente, Glória é na Zona Sul” — conta a coreógrafa, rindo.

Deborah foi uma das precursoras de um movimento das artes em direção ao bairro. De lá para cá, muita coisa (e muita gente) mudou para a Glória. Na Rua Santo Amaro, por exemplo, a Cal (Casa das Artes de Laranjeiras), tradicional escola de teatro da cidade, abriu sua faculdade de artes cênicas.

A primeira turma se formou no início deste ano. Na Rua Santa Cristina, fronteira com Santa Teresa, fica a casa ocupada pela companhia franco-brasileira Dos à Deux, onde antes era um cortiço. Metade do imóvel de cerca de 600 metros quadrados já foi reformada e o próximo plano do grupo é fazer do espaço — que já serve como local de ensaios, criação e hospedagem para outras companhias — um teatro.

Estes e outros exemplos, somados ao fato de que os aluguéis são mais baratos do que no restante da Zona Sul (a locação do metro quadrado é 15% menor que em Copacabana e 60% menor que em Ipanema) e aos eventos que têm ocupado os casarões da região, trouxeram novos ares.

O bairro, que foi moradia de índios Tupinambás, nobres, deputados, senadores e que já amargou longos períodos de abandono, especialmente depois que o Rio deixou de ser a capital federal, hoje está se transformando em reduto do “pessoal das artes”. A leva de novos inquilinos inclui atores, diretores, bailarinos, produtores, fotógrafos…

— A Glória lembra muito o Vingtième, que é a região onde estamos estabelecidos em Paris e que reúne muitos artistas — explica Artur Luanda Ribeiro, fundador do Dos à Deux ao lado de André Curti. — O trabalho de reforma do nosso imóvel, que é de 1846, é muito trabalhoso, mas o resultado vem ficando incrível.

O casarão onde moram o empreendedor cultural João Henrique Braune e sua mulher, a bailarina Renata Versiani, é ainda mais antigo, de 1770. É ali, na Ladeira da Glória, que funciona a Casa da Glória, lugar para ensaios de teatro e dança de diversas companhias, aulas de ioga e de perna-de-pau, além de eventos.

— No dia 13, teremos uma edição da Junta Local (feira em que produtores é que fazem as vendas) e, dia 20, o Cluster (evento de moda, design e gastronomia). Dia 26, é a vez do Festival Repense Cerveja, de bebidas artesanais — diz Braune.

Logo abaixo, na mesma ladeira, mais um atrativo: a Casa Cor, até 4 de outubro. Quem for terá a chance de ver de perto a Villa Aymoré, conjunto de casas centenárias onde morou a Baronesa de Sorocaba.

Foi em março que finalmente ficou pronto o imóvel comprado e reformado pelo diretor executivo da Companhia Deborah Colker, João Elias, perto do centro de dança. O lugar agora é chamado de “A casa dos bailarinos’’, pois é ali que moram a uruguaia Rosina Gil e o mineiro Uátila Coutinho, que em janeiro se tornaram integrantes do grupo.

Desde que se mudaram, os dois viraram assíduos frequentadores da Glória. Ele diz que é louco pelo supermercado do bairro. Ela ama a Pizzaria do Chico, na Rua Santa Cristina, famosa pela receita de escarola, e da feira de orgânicos da Rua do Russel aos sábados. No local ainda funciona a produtora cultural de Miguel Colker, filho de Deborah.

— Esta casa estava em ruínas, não dava para saber onde começava um andar e onde terminava o outro. Olhando agora, nem dá para acreditar no que ela se transformou — conta Miguel.

João Elias explica os motivos da compra e da reforma:

— Quase metade do nosso elenco vem de fora e havia uma enorme dificuldade de encontrar aluguéis acessíveis no Rio. Levei um ano e meio negociando a compra do casarão, depois vieram nove meses de obra. Hoje ele é dividido em quatro apartamentos, todos alugados a um preço justo.

Os preços de locação na Glória, de modo geral, são mais atraentes. Enquanto apartamentos de 70 metros quadrados podem ser alugados no bairro por cerca de R$ 2.800, em outros lugares da cidade, como Botafogo, a mesma metragem pode valer R$ 3.200. No Jardim Botânico, o preço sobe para R$ 3.600, de acordo com dados do Sindicato da Habitação do Rio (Secovi Rio).

— O trânsito complicado também tem sido um fator importante para as pessoas escolherem a Glória. Perto do Centro, com uma estação de metrô, há inclusive quem opte por ter um apartamento no bairro para usar somente durante a semana — explica o vice-presidente do Secovi Rio, Leonardo Schneider.

O ator Michel Blois, de 32 anos, mudou seu estilo de vida desde que se instalou na Rua Cândido Mendes:

— Já tinha três amigos morando por aqui e resolvi experimentar a região. Percebi que simplesmente não precisava mais de carro depois que vim. Eu tenho metrô logo ali e faço quase tudo a pé.

Para um de seus programas preferidos no bairro, aliás, Michel só precisa dar alguns passos. Aos domingos, ele costuma bater ponto na feira livre na Rua da Glória, programa que parece ser obrigatório para qualquer morador do bairro. A canadense Isabelle Simard, de 26 anos, que morava na Tijuca até outubro, quando se mudou para a mesma Cândido Mendes onde mora Michel, também está sempre por lá.

— A Glória, para mim, tem mais a cara do Rio. Eu consegui achar um lugar onde tem verde, micos e pássaros. Não devo me mudar daqui tão cedo — conta ela, que faz doutorado em Neurociência na UFRJ e tem uma pequena empresa chamada MTL Cakes, que vende os bolos que ela mesma produz. — Adoro cozinhar e acho quase todos os ingredientes que preciso por aqui. Uso muitos produtos tipicamente brasileiros.

A grande atração da feira são as tapiocas. O dono de uma das barracas, Hilton dos Santos Melo, conta que a cada domingo são vendidos cerca de 150 quilos de goma, o equivalente a 800 unidades. O movimento, incrivelmente, começa às 5h30m, quando os trabalhos ainda estão no início.

— É por causa desse pessoal que sai no sábado à noite e emenda. Eles passam aqui direto para comer — ri.

Os bailarinos Rosina e Uátila nunca foram assaltados na região. Assim como a estudante canadense Isabelle e os responsáveis pela Cia. Dos à Deux, Artur e André. A violência, no entanto, ainda assusta alguns moradores e aqueles que passam pelo bairro. Principalmente depois que, em maio deste ano, uma chilena foi esfaqueada na Praça Paris, durante um assalto. Ao analisar os dados do Instituto de Segurança Pública, a coordenadora-executiva do movimento Rio Como Vamos, Thereza Lobo, diz que a sensação de insegurança é maior que a insegurança em si:

— Os roubos de rua na área dos bairros que incluem a Glória, de acordo com a divisão que adotamos, caíram de 2.200, em 2009, para 1.700, em 2014. Apesar de terem tido um aumento no início de 2015, já voltaram a diminuir no segundo trimestre deste ano. Ou seja, não se pode dizer que há uma tendência de crescimento — analisa Thereza. — Nós alertamos sobre os índices que sobem, mas temos que ter cautela com os números. Taxas referentes a roubos de carro e homicídios dolosos também tiveram queda nessa área da cidade.

Enquanto os novos moradores trazem um clima de mudança, os antigos também tentam renovar a região tirando projetos do papel. Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Eduardo Costa, que mora há anos no bairro, desenvolveu o “Glória 500”, um workshop que pode ser realizado na Casa da Glória, aberto a todos os moradores, para que fossem pensados diferentes projetos para a região nos próximos 50 anos:

— Já imaginou se pudéssemos propor uma solução para a Praça Luís de Camões não ficar vazia? Se fizéssemos uma ligação com a Praça Paris? São ideias assim que podemos tratar no encontro e que podem ser replicadas por diversos outros bairros da cidade.

Um desejo comum a vários moradores da região é certamente a reabertura do Hotel Glória, um dos maiores símbolos do bairro. As obras estão paradas desde o segundo semestre de 2013, quando agravou-se a crise financeira do grupo X, do empresário Eike Batista, que havia comprado o complexo hoteleiro.

— Ter o hotel reaberto é receber um maior fluxo de turistas e, consequentemente, de um público que se interessa por arte e cultura. Isso atrairia ainda mais investimentos, muito necessários para um bairro em que o poder público investe pouco — afirma o empreendedor cultural João Henrique Braune, responsável pela Casa da Glória, que relembra também com tristeza o fim do Teatro Glória, demolido pelo empresário enquanto os trabalhos estavam em andamento.

As esperanças se renovaram quando, em novembro de 2014, Eike formalizou um acordo com o grupo suíço Acron, que assumiria a reforma. As obras, no entanto, cuja finalização chegou a ser anunciada para as Olimpíadas de 2016, não foram retomadas desde então. De acordo com a construtora Método, responsável pelos trabalhos, a paralisação segue por determinação da EBX, do empresário, por falta de investimento — na contramão do movimento que fervilha o bairro.

A pioneira da Santa Cristina

— Se a pessoa se assusta quando eu falo que o estúdio é em Santa Teresa, achando que vai ter que subir muito, eu emendo logo dizendo que é na Glória — brinca a fotógrafa Nana Moraes, uma das primeiras inquilinas comerciais da Rua Santa Cristina, que nos últimos anos se transformou numa espécie de corredor cultural da região, com produtoras, companhias de teatro e outros empreendimentos culturais.

Nana não está mentindo, já que o lugar é tão na divisa que fica difícil dizer onde começa um bairro e onde termina o outro. Mas uma coisa é certa: ela está mais perto do metrô da Glória do que dos restaurantes e museus do bairro de cima. A fotógrafa, que está na área há cerca de 25 anos, diz que sempre achou Santa Teresa um bairro mais charmoso, mas essa sensação vem mudando nos últimos anos:

— Só aqui pela região da Glória ainda é possível encontrar construções com pé direito alto e espaço, que são ideais para ateliês, academias de dança… As pessoas vêm se dando conta disso, por isso estão vindo para cá. Estar aqui há tanto tempo faz com que eu veja de perto essa mudança. Mas o importante é que não perdemos o jeito de cidade do interior.

(O Globo)

 

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